Carlos Heitor Cony morre aos 91 anos no Rio
O romancista, escritor, jornalista e colunista da Folha de S.Paulo, Carlos Heitor Cony morreu por volta das 23h desta sexta-feira (5) aos 91 anos, no Rio de Janeiro. Ele estava internado no Hospital Samaritano e morreu em decorrência de falência múltipla dos órgãos. A informação foi confirmada pela ABL (Academia Brasileira de Letras), da qual ele era membro desde 2000.
O Carlos Heitor Cony que conhecemos -cronista ácido e lírico, romancista prolífico de texto ágil e conciso- forjou-se de uma brincadeira e de uma clausura. A primeira se deu aos oito anos de idade, quando o garoto, que por problemas de formação pronunciava ditongos com dificuldade e trocava letras ao falar (o "g" pelo "d", por exemplo), foi desafiado pelo irmão mais velho e amigos, numa festinha, a dizer "Dona Jandira adora um fogão".
Ingenuamente, disse-o, e foi objeto de agressiva caçoada. Angustiado, em seguida escreveu "fogão" inúmeras vezes numa folha de papel e mostrou-a ao mesmo grupo, que nisso não viu graça alguma. Donde o menino concluiu que, se não falava direito, podia escrever corretamente e ter, na escrita, uma forma de defesa e de manifestação da qual ninguém podia caçoar.
Nascido em 14 de março de 1926, em Lins de Vasconcelos, zona norte do Rio de Janeiro, Cony fora considerado "mudo" pela família até os quatro anos de idade. Só emitira o primeiro som ao levar um susto na praia de Icaraí (Niterói) ante o surgimento de um hidroavião vermelho vindo do mar em direção à areia. Em 1941, quando já estava com 15 anos, uma cirurgia poria fim ao problema.
O projeto inicial do ficcionista, segundo confidenciou o próprio em diferentes ocasiões, era compor um conjunto de dez romances, uma série sobre a "condição humana". Auto-ilusão, sem dúvida, pois Cony, desde o início, sempre foi, acima de tudo, uma máquina humana de escrever; vulcânica, acelerada, infatigável, fora de controle do próprio dono.
Não só produziu bem mais do que dez romances (foram 16 no total), como enveredaria incansavelmente pela crônica e outros vários gêneros: romance-reportagem, biografias, ficção infanto-juvenil, adaptações de clássicos nacionais e estrangeiros. No total, sua produção reúne 65 publicações, sem falar naquelas realizadas em parceria ou a participação em coletâneas.
Certamente não tinha preocupação de fazer obras-primas. Escrevia, simplesmente, de modo compulsivo, como extensão, no papel, de sua fisiologia. Muitas vezes se classificou como um autor "sem estilo" -embora, segundo diferentes críticos, isso esteja longe da realidade. Sempre auto-irônico, disse numa entrevista: "Acho que já poluí demais o mercado editorial. O Ibama deveria tomar uma providência contra mim".
Se o reconhecimento literário veio cedo, expresso em prêmios e resenhas elogiosas, foi como cronista -cuja estréia se deu em 1962 no "Correio da Manhã" (onde fora contratado em 1960 como copidesque e depois editorialista)-que Cony surgiu para uma faixa mais ampla de leitores. A coluna, em revezamento com o escritor Otávio de Faria (1908-1980), chamava-se "Da arte de falar mal".
Quando de sua reunião em livro, em 1963, o crítico Fausto Cunha destacou o domínio da língua e a temática individual, elogiando-lhe, entre outros aspectos, a "audácia da afirmação", uma qualidade, segundo ele, ausente em "nossos cronistas". A explosão pública de Cony, porém, ocorreria no ano seguinte, logo após o Golpe de 1964. E não por acaso. Avesso a grupos, sem laços partidários nem compromissos programáticos, o cronista pôde se dar o luxo de, a partir de abril daquele ano, agir por instinto, atirar sozinho, expor-se como e quando achasse melhor em reação à implantação do regime militar.
As crônicas dos dias e semanas imediatamente posteriores ao Golpe são de uma ousadia sem igual em toda a imprensa. Cony dava nome aos bois. Chamava o Golpe de "quartelada", ironizava a presença político-militar dos Estados Unidos no país, investia contra os altos comandantes do novo regime.
O impacto de seus textos era proporcional ao pasmo que tomara conta da maior parte dos setores atingidos pelo golpe, ainda mais por serem provenientes de um autor antes freqüentemente tachado de "alienado" e individualista -rótulos que ele próprio, diga-se, nunca rejeitou.
"Era o nosso respiradouro", escreveu em 1996 Moacyr Scliar. Testemunha o também escritor Luiz Fernando Veríssimo: "Em pouco tempo, aquele ato, ler o Cony, se tornou um exercício vital de oxigenação para muita gente, e a sua coluna uma espécie de cidadela intelectual em que também resistíamos -mesmo que a resistência consistisse apenas em dizer "É isso mesmo!", ou "Dá-lhe, Cony!", a cada duas frases lidas. "Leu o Cony hoje?", passou a ser a senha de uma conspiração tácita de inconformados passivos cujo lema silencioso seria "Pelo menos, eles não estão conseguindo engambelar todo o mundo".
Os relatos da noite de autógrafos de "O Ato e o Fato, livro que reuniu essas crônicas poucos meses depois de publicadas em jornal, dão conta de um sucesso retumbante: mais de 1.600 exemplares vendidos na ocasião; edição esgotada em poucas semanas.
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